O início de um grande amor
A primeira vez que entrei num estádio foi com o meu pai, e nem foi para ir à bola. Ele deslocava-se de scooter. Um dia estacionou-a junto ao estádio, entrou por um portão preto, subiu umas escadas apertadas e nesse primeiro andar comprou um pequeno autocolante naquela que era então a secretaria do Portimonense. Sem que tivesse percebido na altura, estava a testemunhar um momento histórico na minha vida.
Quem o atendeu nesse dia, e certamente noutros dias que vieram antes e depois, foi o Jorge Dias, que ainda por cá anda ao serviço do Portimonense. O Jorge já é um daqueles funcionários que faz parte da mobília, mas a devida homenagem a seu tempo virá, juntamente com os cabelos brancos.
Seguiram-se os jogos. Não sou capaz de precisar anos, mas garanto que estávamos na II Divisão B, por isso se tivesse que dizer um ano, diria 1996 ou 1997. Lembro-me de perguntar ao meu pai contra quem estávamos a jogar e ouvir respostas como Camacha, Lusitano ou Oriental…
Apesar do cheiro incrível e apetitoso, não me recordo de alguma vez ter comido polvo assado no estádio. Havia sempre alguém a vender à porta do estádio (na entrada dos sócios, claro). Se era inverno, saquinhos de tremoços e de alcagóitas ou nougats. Se era verão, gelados, por vezes de origem duvidosa. Tudo sem sair da bancada. Pago ainda em escudos numa transação feita sempre à força de braços: o cliente atira a moeda lá para baixo, o vendedor atira o gelado cá para cima. Mordomias que o progresso foi matando.
O meu pai tinha o lugar cativo mesmo na última fila, lá em cima, no enfiamento do túnel por onde entravam jogadores. Invejava aquele lugar porque tínhamos a sorte de ter encosto. Quem estava à nossa frente não podia encostar-se por causa das pernas alheias, mas nós tínhamos o muro dos camarotes. Às vezes espreitava pelo muro e via os camarotes vazios, só umas cadeiras com um forro castanho. Para me entreter, às vezes saltava o muro e via o jogo alguns minutos sentado numa cadeira com forro. Mas nunca por muito tempo. A bancada tinha mais vida, era do povo, como eu.
Das primeiras vezes que subi os muitos degraus até ao lugar do meu pai, assim que olhava para o relvado sentia vertigens de tão alto que estava. O sentimento paralisava-me mas não me demovia de contemplar o estádio. Tinha medo de cair mas uma vontade ainda maior de ficar a olhar. Talvez por causa das vertigens, não descia com tanta frequência as escadas para ir até ao ringue fazer amigos da minha idade e jogar à bola. E eu nunca fui bom de bola e eles jogavam todos bem melhor que eu, por isso ficava-me quase sempre pela bancada.
À nossa frente, algumas vigas de ferro impediam uma visão perfeita do campo e suportavam uma cobertura de telhas onduladas cujo material não sei, mas lembro que eram meio translúcidas. Mesmo ali perto, uma caixa de som. Ah, o som… Como o meu pai gostava de chegar cedo ao estádio para ver o aquecimento dos jogadores, ouvíamos sempre as mesmas músicas, certamente porque a cassete era sempre a mesma. Não me lembro dos nomes das canções de memória (se as ouvir, consigo identificá-las), mas uma das mais icónicas para mim será sempre a Que Bonita Eres da banda El Chato. Ouvi-la é transportar-me automaticamente para essa época, com toda a nostalgia que isso implica.
E os companheiros de bancada do meu pai, que aos poucos passaram a ser meus companheiros também. Gente impecável, divertida, com os comentários mais engraçados ao jogo. Gente cujos nomes nunca aprendi e cujas caras o tempo ajudou a esquecer, mas que não mais pude reencontrar desde que o meu pai deixou de ir à bola, consequência do divórcio. Afinal é possível ter saudades de gente que já esquecemos. Foi ali e com eles que assimilei aquele estilo de vida e me fiz adepto de bancada. Impaciente, exigente, expressivo e vocal.
Quando me tornei sócio e comecei finalmente a pagar as minhas quotas — o que espero poder fazê-lo até ao fim da minha existência —, já não subi aquelas escadas apertadas nem obtive um pequeno autocolante no cartão. E também já não era preciso: as sementes para um grande amor já tinham fortes raízes.